quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O debate - imigraçao

Sou filho de imigrantes. O meu pai e a minha mae fugiram da ditadura militar argentina em 1976, encontrando em Portugal a recém-nascida liberdade. Nesse sentido, sinto-me filho de Abril. Os meus pais encontraram num Portugal Livre o local para estabelecer família. Se o Estado Novo tivesse durado mais 2 anos, eu nao seria quem sou, nao seria Português. Sou filho de Lidia Elsa David de Erlich Oliva e de Alejandro Erlich Oliva. Mas na minha genealogia entra também, com toda a sua magia, o 25 de Abril de 1974.

Foi com prazer que uma vez frequentei um ginásio em que um português filho de argentinos, a meio de uma tarde, assistiu a uma conversa amena entre o brasileiro dono do estabelecimento, um atleta ucraniano e outro africano. Foi com prazer que vi o meu pai, mantendo os seus costumes argentinos, escrever semanalmente n' "A Capital" um artigo totalmente dedicado à música clássica portuguesa, ou fundar o mais antigo e galardoado conjunto de música de câmara português, sem nunca ter perdido o seu sotaque castelhano. É com prazer que vejo como mais que provável futuro presidente dos EUA um filho de pai queniano, cuja avó vive ainda numa cabana tribal, rudimentar. A imigraçao ilegal deve ser combatida nas suas raízes, como fez Zapatero ao aumentar exponencialmente a ajuda ao desenvolvimento dos países mais pobres, porque nao favorece ninguém, a nao ser os patroes exploradores. Como tal, o número de imigrantes ilegais é sempre revestido, correctamente, de negatividade. Porém, Rajoy, no debate, criticou o aumento do número de imigrantes legais. Que pensarao essas pessoas? que trabalham, pagam impostos, têm filhos?, que fogem de dramas, perante os quais os países desenvolvidos costumam fechar os olhos e recolher os braços, na procura instintiva de uma vida digna?, que pensaria o meu avô que fugiu do totalitarismo soviético para a Argentina, à procura de fazer música livre - a sua arte - e nao uma guerra de causas distorcidas?, que pensariam eles, pessoas que Rajoy julga nao pelo seu mérito mas por algo tao aleatório como o local de nascimento?

Rajoy identifica como causa do seu pensamento xenófobo aquilo que na realidade é uma consequência do mesmo. 34 % dos reclusos das prisoes espanholas sao estrangeiros. Entao, segundo o PP, isso significa que os imigrantes sao naturalmente cruéis, que têm o objectivo de disseminar o mal em Espanha e que, quais agentes do Diabo, devem ver a sua entrada altamente condicionada. Ora, o valor percentual acima referido é, na realidade, a consequência da materializaçao do pensamento de Rajoy durante os anos de Governo PP, e nao a sua causa. Se, uma vez que entram, o Governo do país receptor isola, segrega e difama os imigrantes, é natural que ocorra uma criminalizaçao parcial dos mesmos. Chelas nao é perigosa por morarem lá imigrantes e suas descendências - é perigosa por ser um sítio de habitaçao quase desumana; se colocássemos os imigrantes empobrecidos a morar, com altos rendimentos, em Cascais, e a alta sociedade dessa localidade a viver com o salário mínimo, em Chelas, concerteza começaríamos a ver, em poucos anos, mais luso-africanos no Parlamento e a mesma perigosidade nesse bairro social, mas desta vez exercida apenas por portugueses de longas geraçoes e apelidos pomposos. Neste sentido, fiquemo-nos com um número: o Governo PP gastou zero Euros na integraçao de imigrantes. O Governo de Zapatero gastou duzentos milhoes de Euros, aplicados na integraçao, na justiça, na liberdade de cada um ter oportunidade de perseguir o seu sonho.

Nas linhas gerais do "contrato de integraçao" que Rajoy propôs, a celebrar entre os imigrantes e o Governo espanhol, há uma proposta de que o imigrante se comprometa "a respeitar os costumes espanhóis". Qual a fronteira entre o respeito e o desrespeito, e quais teriam sido as consequências se esta proposta fosse aplicada noutros lugares, noutros tempos? Apliquemos ao senso comum valorativo a afirmaçao de Max Weber de que para compreender a acçao social, é necessário "pôr-se no lugar dos outros". O emigrante português ouvir fado no estrangeiro - teria sido desrespeito? Que os jovens luso-africanos oiçam kizomba - será desrespeito? Nao festejar o Natal, falar em crioulo, nao comer por causa do Ramadao - será desrespeito? E, aliás, o que sao "os costumes espanhóis", ou os costumes de qualquer outra sociedade pós-industrial? - o que têm em comum os hábitos de um "português genuíno" de 30 anos morador em Lisboa e os hábitos de um "português genuíno" idoso e residente em Trás-os-Montes? E, assumindo a duvidosa existência uniforme desses hábitos "nacionais", porque é que o comprometimento de respeito é apenas dos imigrantes em relaçao aos costumes dos espanhóis, e nao dos espanhóis aos costumes dos imigrantes?

Lembro-me vagamente de ver, nao sei se numa publicidade, ao vivo, num filme - a memória é imprecisa, mas as imagens que cria perduram - um criança de dois ou três anos a abraçar um globo terrestre, mais ou menos do seu tamanho, com as duas maos em lugares opostos do mundo e um sorriso nos lábios. O sentido da solidariedade, da integraçao, da partilha da essência da condiçao humana, sao simples e totais como esse abraço. Pena que alguns, em vez da unidade na diversidade, continuem a apregoar crispaçao da xenofobia.






2 comentários:

marcos disse...

Para além da crispação, Rajoy manipula os receios de parte da população como arma política. Isso está bem patente quando demoniza os imigrantes, esquecendo que são um pilar fundamental do dinamismo da sociedade e da economia espanholas. Quando a direita não tem ideias nem argumentos, agarra-se à fantasia de uma nação primordial que considera assediada e em perigo, e promete a salvação dos justos contra o mal absoluto. O maniqueísmo é total. Rajoy não entende que a nação, em Espanha mas também em Portugal, já é hoje outra coisa, multicultural, e que a política deve dar resposta a esse desafio. E deve ter a coragem de acordar para o mundo novo. Em pleno debate com ZP, Rajoy criticou este de andar 4 anos distraído com aquilo que não interessa a ninguém: o diálogo de civilizações... De facto, um homem destes não pode ser presidente do governo na Espanha do século xxi.

André Valentim disse...

É pena ainda haver pessoas, especialmente políticos, que pensem assim. Na Era Global é impensável fazer distinção entre as pessoas, pela sua origem ou cor. Somos todos iguais. Os espanhóis que pensem: Se Rajoy pensa assim com os imigrantes, provavelmente vai pensar de forma semelhante com as pessoas que habitam em bairros pobres ou que apesar de serem espanholas têm cor negra (por exemplo).
Vale a pena reflectir sobre o que aqui foi dito.

Mais uma vez, parabéns pelo blog